domingo, 5 de janeiro de 2014

Acabei de ler a biografia de Clarice Lispector (Benjamim Moser, traduzido por José Geraldo Couto) e estou muito comovida.

É estranho como eu supunha muitas coisas a respeito da vida da escritora sem nenhum fundamento mais concreto.

Acho que em algum lugar eu já tinha lido aquela história do filho do Otto Lara Rezende dizendo que havia algo "pulando" em Clarice, e que não queria que ela fosse sua mãe, e por isso talvez eu tenha ficado com a impressão de que Clarice não podia ter sido uma boa mãe ou esposa, ou uma mãe e esposa disponível (na verdade, pensando bem não é preciso grandes indícios para fazermos esse tipo de julgamento...). 

Ou pode ser também que as donas de casa dos seus romances é que tenham me dado essa impressão de que a vida em família para ela deveria ser extremamente tediosa e que os filhos estariam em segundo plano na sua vida. Bom, a biografia desfez essa impressão, ao transcrever cartas e entrevistas que mostram uma mulher afetuosa e extremamente preocupada com o bem-estar dos filhos, que não se mantinha reclusa para escrever, mas fica completamente à disposição deles, que a interrompiam sempre que queriam. De todo modo, acredito que a biografia me fez compreender melhor os escritos da escritora, e também a sensação de asfixia que me despertam alguns textos. Porque, afinal, o que parece é que Clarice foi de fato prisioneira, algumas vezes de suas próprias escolhas (como quando decidiu ser a "esposa perfeita" de um diplomata) outras da condição de uma mulher da sua época, vivendo longe de seu país. Quando volta ao Brasil, divorciada, as coisas parecem não melhorar muito. Os últimos capítulos da biografia são comoventes porque retratam a grande vulnerabilidade da escritora, e indícios de que ela realmente desistiu de viver aos cinquenta e sete anos. Quando eu vi pela primeira vez a entrevista de Clarice, no youtube, não pude deixar de pensar que ela estava fazendo um pouco de cena, brincando com a imagem de escritora hermética que ela mesma criou. Fiquei um tanto chocada ao saber que ela morreu pouco depois.

Como fã de Clarice, eu meio que devorei o livro. Me parece, contudo, que ele pode ser interessante também para quem não tem grande afinidade com a obra da escritora. É que o contexto histórico que envolveu a sua vida da está muito bem retratado e, além disso, me parece que é sempre curioso observar como um estrangeiro vislumbra a realidade de nosso país.

Destaquei dois trechos bacanas, de fatos históricos dos quais eu não tinha conhecimento, para postar aqui. Segue o primeiro:
"Em janeiro de 1942 (...) todas as nações americanas, com exceção da Argentina e do Chile, romperam relações com o Eixo. (...) Hitler e Mussolini começaram a torpedear navios brasileiros, matando centenas de pessoas. O Baependi foi a pique com 250 soldados e sete oficiais, com duas baterias de artilharia e outros equipamentos. Outro navio, repleto de peregrinos a caminho de um Congresso Eucarístico em São Paulo, também foi afundado. Em resposta à previsível resposta popular generalizada, o governo baixou um decreto em 11 de março de 1942, autorizando o Estado a compensar os danos confiscando as propriedades dos cidadãos do Eixo.
Em pouco tempo seguiram-se cenas de pogroms, vitimando especialmente os cidadãos mais visíveis do Eixo, os japoneses. Se os italianos e alemães podiam frequentemente passar por brasileiros, os japoneses não podiam (...) seus bens foram confiscados e eles foram expulsos das áreas litorâneas, onde eram suspeitos de manter comunicação secreta com os submarinos do Eixo. (...) O velho bairro de Clarice Lispector no Recife testemunhou uma insólita inversão da situação na Alemanha alguns anos antes (...) Um afável japonês que tinha uma sorveteria nos arredores teve seu estabelecimento saqueado. 'Destruíram tudo, apesar de tudo que gostavam dele, dos sorvetes deliciosos. Era uma sorveteria linda, com orquestra até.'" (p. 198-200)

Não sei se isso é algo realmente óbvio e super conhecido, mas eu de fato não imaginava que os japoneses tinham sido perseguidos dessa forma na época da segunda guerra no Brasil, tendo sido alvo de ataques dos próprios cidadãos... Enfim.

Outro trecho (esse me faz acreditar na humanidade) diz respeito à criatividade dos jornalistas da época da ditadura para noticiar o que não podia ser noticiado: 
"No dia seguinte à decretação do AI-5, Alberto Dines concebeu no Jornal do Brasil uma das primeiras páginas que o tornaram famoso.'Ontem foi o dia dos cegos', noticiou o jornal, no alto, à direita. Dois artigos censurados na primeira página foram ostensivamente substituídos por anúncios classificados. O boletim meteorológico, no alto, à esquerda, dizia: 'Nuvens negras. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos'". (p. 428).

Em resumo, terminei o livro com vontade de reler alguns livros de Clarice Lispector (especialmente "A Hora da Estrela" e "Perto do Coração Selvagem") e ainda mais fascinada com a envolvente personalidade de Clarice, com pena que tivesse chegado ao fim. 











3 comentários:

  1. Rosilda, essa biografia da Clarice é realmente tocante, Benjamin é fera! Li que ele passou anos e anos pesquisando a vida da Clarice, e o resultado foi esse que tu acabou de ler. Já leu "Felicidade Clandestina"? É que eu, particularmente, prefiro os contos da Clarice. Ah, temos outro gosto em comum: o site da Cynara! Adoro ela e o blogue dela! (socialista morena). Um abraço, Ulisses.

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    1. Olá!
      Realmente, dá para perceber que o trabalho de pesquisa foi extremamente cuidadoso, e narrado com a delicadeza de um admirador. Li "Felicidade Clandestina" sim, na verdade acho que é o livro dela que eu li mais recentemente. Li muita coisa de Clarice quando adolescente, e fiquei muito impressionada; na verdade, aconteceu que para mim Clarice Lispector se tornou mais do que uma excelente dica de leitura - desde logo eu me deixei levar por essa atmosfera mística que fui entender melhor com a biografia - essa busca por deus (ou pelo deus, como diria Clarice). Mas vc lembrou de "Felicidade Clandestina" por conta do personagem Ulisses? É um livro não tão impressionante se comparado com os demais, e o final pareceu um pouco fácil demais. Vc leu a biografia? Nela há a insinuação de que Ulisses provavelmente é uma personagem baseado num psicanalista de Clarice, da época em que ela viveu em Berna... O personagem na verdade é bastante chato, vc não acha? Obrigada por comentar! Fucei um pouco teu blog e gostei bastante. A Cynara é ótima mesmo! Abraço, Rosilda.

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    2. Opa, minha resposta ficou super confusa porque obviamente confundi os títulos "Felicidade Clandestina" e "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres". Desculpe. Eu li "Felicidade Clandestina". Gosto dos contos da Clarice, mas tenho certa restrição com contos em geral porque normalmente eu gosto de me envolver e passar mais tempo com os personagens, então contos para mim são como um encontro casual, e quando eu gosto muito fico nostálgica.

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