Isso porque estou muito mal humorada pra estudar e com pouca paciência para ler qualquer coisa mais longa.
Daí que começo a vasculhar a internet e tal, e resolvi procurar a tão falada lei antiterrorismo que tramita no Senado. O link do texto está aqui e me parece que faz jus a todas as críticas, inclusive no que diz respeito ao oportunismo da tramitação e eventual aprovação em ano de Copa, para evitar protestos e tal.
Os crimes previstos no projeto são extremamente abertos, o que quer dizer que pode haver muita margem pra interpretação -quem entende um pouco de direito sabe que isso indica desde logo que não são de boa técnica. É que os crimes devem ser descritos de tal forma que não caiba uma interpretação dúbia, ou duplo sentido - o texto deve ser o mais claro e objetivo possível, até para garantir que sejam aplicáveis a todos com o mesmo rigor, sem subjetivismos do julgador ou quem quer que seja.
Dito isso, olha só o texto do crime mais grave previsto pelo projeto de lei:
"Art. 2º Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à privação da liberdade de pessoa."
A primeira pergunta a se fazer é: como se definirá o que é "terror ou pânico generalizado"? Quem definirá isso e sob que critérios? Ora, segundo ao menos uma parcela da população, que só anda de carro blindado e pouco sai de casa, já vivemos no inferno retratado pelo filme "A Lenda": somos "pessoas de bem", "pagadoras de impostos" acossadas pelo mal, que nos espreita nas ruas, na forma de jovens, como diria o Caetano Veloso, "quase brancos quase pretos de tão pobres".
Para um determinado grupo o terror já está está instalado. É para esse medo irracional do "outro", segregado ao longo da nossa história, que se presta esse projeto de lei? Do que o projeto de lei pretende nos proteger exatamente? E por que ele é cogitado nesse momento?
Penso que pode ser que a pequena e recente diminuição da desigualdade terrível nesse país "onde o capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora" tenha sido o suficiente para nos despertar desse longo sono do brasileiro cordial, tranquilo, transigente com as diferenças. Isso porque, de uns tempos pra cá, nos vemos confrontados com a face do outro, que até então toleramos porque estava fora da nossa vista. O "outro" agora é visto no shopping, no aeroporto, próximo demais, real demais para que possamos sustentar o mito da ausência de conflitos na sociedade brasileira.
Claro, parece existir um motivo muito mais próximo e palpável para o projeto de lei: as manifestações do ano passado e a ameaça de que elas se repitam durante a Copa.
Contudo, só é possível cogitar um projeto de lei para conter uma parcela específica da população que vive num determinado território se essa parcela já é considerada culturalmente como indesejável, ou: se já existe uma segregação, ainda que velada, dos espaços públicos para determinados grupos.
Porque num país construído
Mas numa democracia como é a nossa, qual é o sentido de uma lei antiterrorismo? Na minha opinião, só faz sentido se reconhecemos que para algumas pessoas a manifestação não é livre, que algumas pessoas não podem falar, ou seja, que a democracia e a liberdade de expressão não são direitos inatos a todos os ditos cidadãos. Só faz sentido na medida em que reconhecemos que há e é necessária a segregação de certos grupos. Quer dizer, só faz sentido na medida em que reconhecemos que vivemos numa democracia de faz-de-conta.
Por isso, não quero acreditar que o projeto de lei seja realmente aprovado.
Bem, preciso voltar a falar do texto da lei, porque o texto é, talvez até propositalmente, bem ruim (ao menos o original, talvez as emendas tenham melhorado um pouco). Voltando ao artigo 2º, acima citado, vê-se que fica vedado provocar ou infundir terror ou pânico mediante ofensa ou tentativa de ofensa à:
- vida;
- integridade física;
- à saúde; e o melhor de todos:
- "ofensa à privação da liberdade de pessoa".
Quer dizer, o artigo pretende proteger a liberdade da pessoa ou, ao contrário, garantir a privação de liberdade de um condenado que cumpre pena?
Não bastasse isso, a ofensa à vida, quando concretizada, implica, obviamente, na morte. Se não, é mera tentativa. Só que no mesmo artigo (§ 1º) há previsão de aumento da pena quando do ato resultar a morte.
Outro crime que o projeto pretende criar, e que considero o mais perigoso para a sociedade, é o previsto no artigo 7º do PL:
"Art. 7ºAssociarem-se três ou mais pessoas com a finalidade de praticar terrorismo:
Pena: reclusão de 05 (cinco) a 15 (quinze) anos".
Esse dispositivo é muito perigoso porque pode ser utilizado para conter uma manifestação no seu nascedouro. Como se caracterizaria essa associação? Como se configuraria exatamente que a finalidade é terrorismo, e não uma manifestação pacífica?
É claro que seria muito difícil comprovar a associação "com a finalidade de praticar terrorismo", mas o que pode acontecer é que uma investigação criminal possa amedrontar os organizadores e coibir a própria manifestação.
Não acredito que existam terroristas no Brasil. Temos jovens, muitas vezes despolitizados, muitas vezes ingênuos úteis a determinado grupo de interesses, que ou estão ansiosos para fazer alguma coisa para mudar o país ou, eventualmente, estão sendo declaradamente usados para atingir determinado objetivo.
Mas equívocos e problemas na condução de uma manifestação, erros que muitas vezes são cometidos pelo próprio poder constituído e sua polícia despreparada, não podem servir de desculpa para calar a voz de quem começou a aprender a falar.
Somos uma democracia jovem: nossa Constituição tem só 25 anos! Ainda há muito que fazer, ainda temos muito que aprender para começar a construir um país melhor. E esse projeto de lei parece querer sufocar esse ímpeto, acorrentar um povo que mal começou a aprender a andar sozinho, quer calar quem mal conseguiu emitir os primeiros grunhidos, ainda um tanto desconexos, mas audíveis e inteligíveis para quem quiser ouvir e entender.
Esse projeto de lei é vergonhoso e ele, sim, pode ser capaz de criar terroristas no Brasil, que, me parece, hoje só existem na cabeça de quem acredita que é possível construir uma nação sem o seu povo.